... Mas que gostaria que tivesse existido.
Hoje farei da escrita a minha cura. Como o bisturi dO Mundo que você mesmo me apresentou.
Hoje testarei o bisturi na carne e deixarei que a escrita "abr[a] e cauteriz[e], ao mesmo tempo, as feridas" ¹.
Porque esta ferida vez ou outra volta a pulsar. A cicatriz está lá, mas por baixo ainda dói. 10 anos se passaram e ainda penso sobre o não-dito, sobre o fim abrupto e sobre o silêncio que ficou. Nunca mais ouvi a tua voz.
Esta semana decidi me desfazer de coisas que já não servem mais, desapegar-me daquilo que já não cabe, que apenas ocupa espaço: escritos, matérias, copos, lembranças, enfeites etc. A cada dia me desfaço de uma coisa a mais e hoje abri minha caixa de lembranças. Não num sentido metafórico; é literalmente uma caixa onde guardo cartas, poemas, cartões de aniversário, fotos e, como uma memória recaucada, ali estavam o seu texto impresso Lamentações d'uma alma decadente e uma dedicatória de livro escrita por você e arrancada por mim.
Já se passaram 10 anos e continua doendo sempre que encosto na ferida. De vez em quando, sonho com você. E achava que era o famoso questionamento do "E se...", mas talvez não seja isso. Volta e meia, sonho que conversamos e resolvemos aquela história.
A não conclusão me mata aos poucos há anos. Você dizia que eu era "fria" e como esse adjetivo me machucava a cada vez que você o proferia. Tentava a todo custo te provar que não, contudo nem chorar eu conseguia. Até você sair da minha vida. Pois bem, após você, eu choro. Parece que o seu silêncio abriu uma válvula. E todo o choro contido em mim, enfim, transbordou.
Mexer nessas memórias me fez perceber o quanto essa história ainda me incomoda. Mas a falta de conclusão é o que dói. Você nunca disse nada. Você simplesmente se foi. Sem me xingar, sem me mandar para o inferno. Só o nada. Enquanto você esteve no submundo, eu fiquei no limbo e minha mente parece vagar até hoje em busca de um ponto final. Mas só encontro o nada.
"E não importa se não chover, o sentimento estará lá. Promete que o futuro não nos afastará?"
Não prometemos.
E eu que sempre fui de conversar e resolver no diálogo, nunca tive essa chance. Hoje, após terapia, estudos e conversas com amigas verdadeiras, entendo que não controlo o outro, como ele reage e que a conclusão dessa história deve partir de mim, devo saná-la. Por isso, estou aqui nesta operação de peito aberto, com o bisturi na mão, abrindo esta ferida que eu nunca consegui sarar porque eu me apaixonei. Uma paixão que não podia ser. Porque eu não me perdoaria se cedesse. Trair significaria trair meus princípios, a mim mesma, e isso eu jamais poderia permitir.
Mas a culpa durante esses anos nunca me deixou porque você simplesmente desapareceu. Não sem antes saber que você sofreu... calado... ao menos pra mim. E eu também sofri. Ambos "sangra[mos] onde ninguém houvera ferido antes"(P., N.). Nunca fingi que sofria.
Não queria ser cantada pelo bardo. Leve seus elogios de volta. Não era um joguinho, sua escrita ecoava onde o toque não pôde chegar. De alguma maneira, eu sonhei com um beijo que nunca aconteceu, mas eu jamais o iniciaria. E não me arrependo de ter resistido ainda que tenha sonhado durante muito tempo depois com ele.
Não me esqueço do último abraço que nos demos naquela sala. Nossas respirações, o nervosismo. Aquele foi nosso adeus. Mas eu não tinha ideia na época.
"uma amizade como nunca vi antes brotou, e nossos olhares já significavam algo mais... Sim! Foi assim mesmo! Lembro-me muito bem! Começamos devagar, sou cortês... Que abraço maravilhoso! Carregado de libido, sim, era o que tínhamos à época! Oh, por que me deixaste, minha Estrela? Por que te tornaste fria, mudaste-te de constelação? Não sabes que cá eu pereço, sem uma vida? Minha vida és tu e somente tu, Vésper! Sim, não te odeio, pois odiar-te é odiar a mim mesmo!" (P.,N.)
E por que hoje, quase terminando 2022 escrevo sobre algo de 2012?
Porque a memória não conhece o limite do tempo e nosso inconsciente é capaz de revelar aquilo que está oculto ao nosso consciente.
"Certa vez, escrevia à mesa, e Ela estava sentada próxima. Fingi que não havia entendido uma palavra, e chamei-a para lê-la para mim. Deitou-se sobre a mesa. Seus cabelos, em meu rosto. Naquele fragmento temporal pude sentir o perfume mais agradável que já senti nessa vida. Inspirava em seus cabelos, inspirava-a e transpirava. Como desejei que aquele momento durasse! E ela sorriu-me... Sorriu-me! " (P.,N.)
Escrevo aqui e remeto-me ao seu texto porque não posso mais ignorar. A culpa me consome por algo que não pude controlar, por ter (quase) me deixado levar. Meu corpo não foi aonde só a minha mente pôde chegar. E não quero mais sentir a angústia que sinto. São muitos anos entre idas e vindas a essa história. Seu nome me embrulha o estômago e me traz uma tristeza profunda que disfarço como se já não fosse nada para quem me vê, mas se pudesse ver minha mente, não acreditaria no turbilhão que há.
Preciso abraçar a Stella de 2013. E dizer pra ela que está tudo bem. Que ela pode seguir em paz, que o futuro será belo, que ela pode chorar, e também se permitir ser feliz por completo sem se martirizar por tanto tempo. Abraço-a e digo: você PRECISA se desfazer hoje, agora, do que já não cabe mais. Não leve tantos anos lendo e relendo aqueles escritos escamoteados como se isso fosse aliviar a sua dor. Não irá. Deixe-o ir com seu silêncio, com sua covardia de não dizer nada. Não se martirize. Converse consigo mesmo e encerre essa história. Queime essas palavras que te fazem mal.
Escrevo aqui porque necessito arrancar do peito o desejo de te encontrar nos corredores da vida e, talvez, isso um dia ocorra (ou talvez não).
"Um dia desses num desses encontros casuais/ Talvez a gente se encontre/ Talvez a gente encontre explicação. Um dia desses num desses encontros casuais... Talvez eu diga, [meu amigo], Pra ser sincero, Prazer em vê-l[o], até mais... Nós dois temos os mesmos defeitos/ Sabemos tudo a nosso respeito/ Somos suspeitos de um crime perfeito/ Mas crimes perfeitos não deixam suspeitos..." (Pra ser sincero, Engenheiros do Hawaii)
Careço de deixar tudo aqui para seguir. Cada palavra, as canções que me lembram você e até hoje te trazem à minha memória. Devo libertá-las. Libertar-me.
"Quando não estás aqui, meu espírito se perde, voa longe..." (Sete Cidades, Legião Urbana)
Ambos voamos alto em nossas ilusões, pensamentos, palavras que não podiam sair à luz. Quisemos alcançar as estrelas. E caimos no mar de nossas lembranças com nossas asas derretidas. Mas não morri, ainda estou aqui. Escrevendo-te a mim mesma para ser livre do poder das tuas palavras, da tua lembrança tão borrosa.
E espero que se, algum dia, te encontrar, eu não sinta mais a dor que sinto, que é só o que restou dessa história. Porque espero que esta seja a última vez que me torture com suas palavras escritas que ainda doem pelo fim não-fim. Porque a conclusão parte hoje de mim pra mim mesma com o segredo que você me presenteou e que é a chave: o bisturi-escrita que redescobri após anos quase aposentado.
Agora abro e cauterizo de verdade esta ferida porque não atravessarei um ano mais com isso dentro de mim.
Seus escritos serão queimados e eu me libertarei de você. Não quero o teu mal. Quero o teu sucesso e a minha liberdade: mente e coração livres, como eu imagino que você esteja hoje.
Eu serei feliz e me permitirei ser. Deixo o passado ao que lhe compete: o passado. Não quero mais viver en el tiempo de mis recuerdos. Quero viver inteiramente no presente e que o passado não me detenha. Está é a minha Catarse.
Não terminarei mais nossa conversa em meus sonhos.
Eu a termino aqui e agora.
¹ MILLÁS, Juan José. O mundo. São Paulo: Planeta do Brasil, 2009.
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